domingo, 27 de maio de 2007

"Se os tubarões fossem homens..."


" 'Se os tubarões fossem homens', perguntou ao senhor K. a filha da sua senhoria. 'Eles seriam mais amaveis com os peixinhos?' 'Certamente', disse ele. 'Se os tubarões fossem homens, construiriam no mar grandes gaiolas para os peixes pequenos, com todo o tipo de alimento, tanto animal quanto vegetal. Cuidariam para que as gaiolas tivessem sempre agua fresca e tomariam toda especie de medidas sanitarias. Se, por exemplo, um peixinho ferisse a barbatana, então lhe fariam imediatamente um curativo, para que ele não morresseantes do tempo. Para que os peixinhos não ficassem melancólicos, haveria grandes festas aquaticas de vez em quando, pois os peixinhos alegres têm melhor sabor que os tristes.Naturalmente, haveria também escolas nas gaiolas. Nessas escolas os peixinhos aprenderiamcomo nadar para as goelas dos tubarões. Prescisariam saber geografia, por exemplo, paralocalizar os grandes tubarões que vagueiam descansadamente pelo mar. O mais importantesaria, naturalmente, a formação moral dos peixinhos. Eles seriam informados de que nada existe de mais belo e mais sublime do que um peixinhoque se sacrifica contente, e que todos deveriam crer nos tubarões, sobretudo quando dissessem que cuidam de sua felicidade futura. Os peixinhos saberiam que esse futuro só estaria asseguradose estudassem docilmente. Acima de tudo, os peixinhos deveriam evitar toda inclinação baixa,materialista, egoísta e subversiva, e avisar imediatamente os tubarões, se um dentre eles mostrasse tais tendencias. Se os tubarões fossem homens, naturalmente fariamguerras entre si, para conquistar gaiolas e peixinhos estrangeiros. Nessas guerras eles fariam lutar os seus peixinhos e lhe ensinar que há uma enorme diferença entre eles e os peixinhos dos outros tubarões. Os peixinhos, eles iriamproclamar, são notoriamente mudos, mas silenciam em linguas diferentes e por isso não podem se entender. Cada peixinho que na guerra matasse alguns outros inimigos que silenciam em outra lingua, seria condecoradocom uma pequena medalha de sargaço e receberia o título de heroi. Se os tubarões fossem homens, naturalmente haveria arte entre eles. Haveria belos quadros,representando os dentes dos tubarões em cores soberbas, e suas goelas como jardins onde se brinca deliciosamente. Os teatros do fundo do mar mostrariam valorosos peixinhos nadando com entusiasmo para as gargantas dos tubarõese a música seria tão bela que a seus acordes todos os peixinhos, com a orquestra na frente, sonhando, embalados nos pensamentos mais doces, se precipitariam nas gargantas dos tubarões. Tambem não faltaria uma religião, se os tubarões fossem homens. Ela ensinaria que a verdadeiravida dos peixinhos começa apenas na barriga dos tubarões. Alem disso, se os tubarões fossem homens tambem acabaria a ideia de que os peixinhos são iguais entre si. Alguns deles poderiam inclusivecomer os menores. Isto seria agradavel para os tubarões, pois eles teriam, com maiorfrequencia, bocados maiores para comer. E os peixinhos maiores, detentores de cargos, cuidariamda ordem entre os peixinhos, tornando-se professores, oficiais, construtores de gaiolas, etc. Em suma, haveria uma civilização no mar, se os tubarões fossem homens.' "

BERTOLD BRECHT - HISTÓRIAS DO SR. KEUNER

domingo, 6 de maio de 2007

"Momentos antes do suspiro"


O telefone toca, insiste uma, duas, três vezes,
eu corro para atender, pensando que é ela,
estou ansioso, meu coração dispara, enlouquece.
Há tempos sonhava escutar novamente sua voz,
lembrar dos velhos sussurros ao pé do ouvido.

Ela, que está longe,estaria agora tão perto de mim,
o percurso para chegar ao telefone parece não ter fim,
cada toque dura uma eternidade, a saudade, porém, me cansa.
O seu beijo, sim, a lembrança de seu beijo me consome,
os seus apertos e abraços ainda me sufocam; o seu calor, atordoa.

Eu, feito criança, penso em chegar junto, nervoso, temeroso,
lembro da primeira vez que nos vimos, ela, ali, encantadora.
Minhas mãos repousam agora sobre o telefone, logo penso:
"Será que ela tem alguma surpresa ou apenas quer se distrair?"

Alguns segundos pareciam horas sem fim, eternos.
Eis aí a magia do cotidiano: pequenos fatos, aparentemente,
porém cheios de ilusões, tornam-se universais e derradeiros.
O canto do sabiá também pode soar como uma serena balada.